O Clamor
pela publicação do Roteiro do Suicida foi tamanho que o o próprio conselho executivo do Notas exigiu sua publicação.
Protestamos. Eu, Renata, Fabrício.
Mas como é noite de chuva e queríamos chegar em casa antes que nossos apertamentos se inundassem, consentimos.
"Mas tem que colar essa foto aí," protestou Renata, "senão, tchau."
Portanto (e sob protesto):
** **
No dia quando eu quiser morrer
resolvo caminhar pelo Leme
pelas suas ruas tão curtas, tão escuras
que até em dia de feira
para quem vinha a pé
desde o impiedoso Posto Três
em contagem regressiva
ao limite do costão dos pescadores
e pairando nas hortaliças ou pescados
reconheceria outra vez
que tudo era negociável.
No dia quando eu quiser morrer
Vou pensar duas vezes e dobrar a Atlântica no Lido,
Onde a minha tia dizia que outrora começava o Leme
Antes da famigerada Princesa Isabel
E entrar pelo flanco na Viveiros de Castro
E olhar sem pressa pra dentro de todos os apartamentos
De janela aberta no andar térreo
E lembrar do que há de pendurado na parede.
E eu pararia em seguida naquele boteco antes da Prado Junior
Onde certa noite descolei a puta mais doce do mundo
Que me levara a um quarto logo ali na outra esquina
E ficamos horas a fio conversando sobre nada
Antes que ela me levasse ao chuveiro para passar
Um bom sabão e uma bela mudança de assunto.
No dia quando eu quisesse morrer
Acordaria logo cedo após o dia nascer.
Sairia do puteiro na Rodolfo Dantas
E passaria, com um aceno de cabeça, pelo Cervantes
Enquanto um nordestino azul desbotado
de tamanco e rodo ou vassoura
escovasse a pedra portuguesa
com um sabão em pedra
com tanta força e dedicação
que eu trocaria de calçada
pra calçada de lá pra não interferir em seu zelo.
E eu subiria a Prado,
No dia em que eu quisesse morrer,
Olhando o que era o beco,
O Cinema 1,
Ganhando aquela praia de novo
Sem o atropelamento do trânsito
Assassino
De Nossa Senhora de Copacabana
Ou da Atlântica.
Ganhando de novo a areia da praia selvagem
à altura da Taverna do Leme,
ou do Méridien, ou das concessionárias
de automóveis e de putas e de viados
e de turistas babacas
onde desemboca o Túnel Novo.
Passo após passo na euforia suicida
De dentes trincados eu caminharia ao leste
Para entrar mesmo no Leme
--vocês não saberiam onde--
No dia em que eu quisesse morrer
Para ver se a Shirley na Gustavo Sampaio
(e não aquela ora em Brasília
que é muito mais importante)
já estaria aberto e pedir do cearense
um caldo de polvo.
E em seguida entrar na General Ribeiro da Costa
e passear sem hesitação de ponta
a ponta na tarde depois da feira
com o asfalto cheirando a feira feita
e comprar o jornal na banca
Na Anchieta na banca do Paraíba
Que herdou o negócio do filho do italiano
E comprar mais quatro ou cinco matérias de leitura
Só pra esvaziar os bolsos dos trocados
E deixando apenas o necessário para a última da vida,
Já que o resto ainda aceita cartão.
E eu pararia no Fiorentina
No dia em que eu quisesse morrer
Numa mesa lá naquela ponta mais afastada
Do serviço às onze e meia da manhã
E mesmo lá fora pediria um pano de linho branco
Fresco e de vinco afiado ao garçom
Passando uma bela nota – a última da algibeira –
Por pura camaradagem ao distinto recipiente.
E depois, a conta fechada,
cambalearia ao final da praia
E subindo ao costão do Leme
No dia quando quero mesmo morrer
Pensaria mesmo apenas na temperatura da água
Lá embaixo
E da coisa desconfortável e impaciente que deve ser
Suicidar-se em qualquer cidade,
Qualquer mar.
E que eu ainda não tenho isso em mim
Feliz ou infelizmente
Naquele dia quando eu queria
apenas
me matar.
8 Comments:
Delicia de ler, C. Melhor ainda por saber que se trata apenas de ficção e não poesia concreta... beijos. E o Fluminense não merece uma gota sequer de sua tristeza. Talvez seja só o comentário tipicamente feminino de quem não entende muito bem como um time pode atormentar tanto um ser humano...
By Anônimo, at 6/10/06 08:12
Nas minhas duas primeiras idas pro Rio, garotão de 19 anos, acho, ou menos, fiquei no Novo Mundo, no Flamengo. Não gostei.
Tudo velho e mofado já no distante 73 ou 74, sei lá.
Mudei pro Plaza, na "famigerada" Princesa Izabel. E jantava na Viveiros e arredores, e olhava o que era, pra mim, paulistano provinciano e meio mariliense, a vida noturna carioca. Que alguns anos antes seduzira um de meus tios...
Bons tempos, apesar da ditadura. E dos famigerados YS-11 Samurai, bimotores japoneses usados na Ponte pela VASP. Eu gostava de voar VASP, sou paulista até debaixo d'água.
By Anônimo, at 6/10/06 19:32
Emerson,
YS-11 da VASP, que apelidaram de "Samurai"... bem mais facil do que "Ipsilon Esse Onze..."
Mas que agora confundo com aquele Vickers Viscount bicudinho da VASP e da Sadia...
Bem, a wikipedia existe pra isso.
**
Quanto ao Hotel Novo Mundo, na Praia do Flamengo, eu ainda me lembro quando (em '66 ou '67) papai passou por la (ele era naquela epoca oficial da embaixada americana) pra pegar o John Foster Dulles Junior (o historiador daquelas biografias de Getulio, Castello Branco, Carlos Lacerda... o proto-brazilianista avant-la-lettre). Um passeio pelo Rio, ou um almoco (provavelmente numa churrascaria, tipo a Gaucha, na Rua das Laranjeiras, que ha muito tempo deixou de existir...) e de repente ate um jogo no Maracana...
Decadas depois, quando eu fazia a minha pos-graduacao na University of Texas at Austin, onde o JF Dulles Jr era professor emeritus (aposentado, porem produtivo) tinha uma colega -- Cacilda, o nome dela -- que foi assistente dele.
Cacilda certa vez me contou o Dulles veio pra ela todo desesperado dizendo que o computador dele nao funcionava: ele girava o mouse pelo ar e nada acontecia.
E a Cacilda, com a santa paciencia acumulada ao longo de 5 mil vidas, explicou direitinho pra ele:
--Nao, Professor. O senhor tem que deixar o mouse em cima da mesa e rolar ele assim...
JFD Jr era do tempo da Olivetti portatil e do papel carbono e da secretaria texana com o cabelo armado em impossiveis esculturas arquitetonicas...
By cjb, at 7/10/06 12:59
Also (and this is not without importance)JFD Jr was a very nice man.
By cjb, at 7/10/06 13:05
Se você me falasse de JFD Jr anos atrás (vá lá... muitos anos atrás), torceria o nariz e não daria bola. Muito menos ao teu comentário complementar. Naquela época, o máximo aceitável em americano escrevendo sobre Pindorama era o Skidmore.
Bullshit...
Mudou o mundo, mas, curiosamente, tenho a impressão que gente como esse Jr. e outros não mudam. São sólidos, meio permanentes... (sim, sim, sim... meio e permanente não dá combinação, mas aqui tem que dar). Parecem-me, à distância, ter uma qualidade importante, tal como o Cruzeiro do Sul e a Estrela Polar: a gente olha pra eles e se orienta.
Ou talvez seja tudo imaginação minha.
By Anônimo, at 7/10/06 13:46
Emerson,
Bem que voce lembrou do Thomas Skidmore.
(Na maldade, a gente chamava ele de "Skidmarks"... aquele rastro de borracha no asfalto que registra a freiada desesperada que antecede a colisao inevitavel...)
Mas isso foi depois da minha epoca de pos na Brown (saih de la em 89 em mudanca para o Texas, que tinha um puta biblioteca)...
Mas ainda na minha epoca de graduacao em Yale, tinhamos os Big Brazilianists:
Al Stepan, Albert Fishlow, e de quebra, a brilhante (e simetricamente antipatica) Emilia Viotti da Costa, cassada da USP em '6X.
E foi lah--idos de '82 -- que conheci por primeira vez FHC. Em pessoa (claro que ja tinha lido Dependency and Development, escrito em parceria com Enzo Faletto).
Pois nao e que ha dois anos atras FHC foi convidado para uma palestra na Library of Congress, aqui em DC.
Assisti na segunda fila. Coisa de 30 ou talvez 40 na plateia.
Chega ao final (e toda a brasileirada querendo tirar foto ao lado do Fernando Henrique) e eu me apresento:
--Mr President, this is the second time in my life that I've had the pleasure to shake your hand. The first was twenty years ago. Much has changed since then.
E demos belas gargalhadas.
FHC (nunca gostei dessa convencao de chamar Fernando Henrique de FHC) was a perfect gentleman. Witty. Simpatico. Inteligente... Quando nao era Brilliant.
By cjb, at 7/10/06 14:03
Eu gosto dele. Curiosamente, conheço alguns tucanos de alta plumagem, mas nunca tive o prazer de conhece-lo. Ainda pretendo corrigir essa falha. O povo que conheci era mais ligado ao Covas.
E vou perguntar-lhe se foi ele mesmo que escreveu o artigo no Opinião que me levou ao MDB e à campanha pró-Quércia para o Senado, em 74. :o)
By Anônimo, at 7/10/06 14:53
Belíssima poesia! Parabéns!
By Anônimo, at 7/10/06 16:32
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