Notas Avulsas

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Doodle


Meu ideal de personalidade canina foi formado pelo Doodle, vulgo "Dudu," o beagle de raça e de estirpe caçadora que juntou-se a nós quando eu tinha 11 anos.

Doodle, de frágil e doente na infância (a mudança das pradarias da Virginia às de Copacabana provocou nele certo cataclisma estomacal) firmou-se forte e fiel na adolescência. Na dele e na minha.

Não gostava de explosão, detonação de qualquer espécie, raro para um cão de caça. Mas ao invés de se acovardar com aquilo (morteiro comemorando gol do Flamengo, a conquista da Copa de '70, o vizinho dando tiro na mulher) ele ficava putíssimo nas calças, corria na direção da coisa, e abria os pulmões em cheio.

Não era propriamente um latido. Como Beagle, ele tinha certo tipo de voz. Mais uma chamada do que um latido. Lancinente como uma sirene em meio à noite pacífica. No parapeito da janela de frente do apê, alerta como um monomaníaco para qualquer alteração suspeita naquilo que ele via, era uma chamada que se repetia amiude, para o terror dos vizinhos, dos entrepassantes naquela Ipanema de seus primeiros anos.

Doodle era o baixinho invocado. Não era agressivo, mas ai de quem ou de que provocasse seu desagrado. Tinha a musculatura forte, rija, dos Beagles de caça, seu faro desesperadamente arguto, a ponto de rosnar com claros prenúncios de agressividade possível a qualquer pizza chegante em casa com meia molécula de orégano, que ele odeiava.

Tinha o peito largo, sólido, e um certo arqueio na disposição das pernas dianteiras -- em close frontal poderia ter sido um Garrincha -- que o livrava da obrigação de ser show-dog.

E, como viríamos a descobrir anos mais tarde, não topava desaforo.

Doodle, como diriam os inglêses, would punch above his weight: espevitado e marrento com outros machos da espécie, ele não fugia da luta.

Certa tarde, anos depois, quando ele já morava nos suburbios de Washington, entrou em combate com o pastor alemão amigão dele que morava ao lado -- o Odin -- e levou a pior: a mandíbula demolida, sua vida por um fio, e eu -- enquanto isso -- lendo FHC e outros na Library of Congress naquela tarde e pegando o ônibus de volta pra casa naquela tarde de verão com a minha irmã dizendo que tinha péssimas novas e que o Dudu provavelmente tava mesmo frito.

(Nota Bibliográfica: Ok, não tenho certeza se eu, naquele dia, teria lido ou FHC, ou Octavio Ianni, ou Paulo Cesar Pinheiro, ou Emília Viotti da Costa -- aquela mulher insuportável e brilhante e absolutamente imprópria para lecionar graduandos em Yale como eu, porque era doida, ressentida, e marrenta--ou talvez até José Honório Rodrigues, que era apenas chatinho... mas juro que meu verão americano de 1980 fora mais ou menos isso...)

Era mais uma dor que se instalava no meu coração.

Mas o Doodle, fiel a minha preferência que os queridos afinal sobrevivam, afinal sobreviveu.

Anos depois, depois de Yale, de Nova Iorque, da Library of Congress, depois do Haiti do Baby Doc, chego do Galeão numa manhã de julho de 82, a guerra das Malvinas recém resolvida, o gol do Falcão contra a URSS recém marcado e chego sozinho no apê na Lagoa do papai, vazio naquela manhã de dia de semana com todos no trabalho, na escola, na feira, no manicômio, sei lá. E eis que o porteiro destranca a porta, e eu descarrego as malas, e -- quantos segundos foram? -- o alvoroço acorda o Doodle, já véinho e sonolento, veterano de 4 Copas, que vem ver o que rola e que de longe me reconhece e que...

Não conto, leitores, leitoras, do desfecho da cena porque nunca houve momento mais puro de amor, reconhecimento, alegria entre duas criaturas de pelo curto e sangue quente como aquele que houve naquele manhã, sem nenhuma testemunha hoje em dia capaz de escrever como de fato correra aquele re-encontro.

E ainda não sei a quem faltaram as palavras.

3 Comments:

  • MEU JEITO

    Quando pareço ausente,não creias:
    hora a hora meu amor agarra-se aos teus braços,
    hora a hora meu desejo revolve teus escombros,
    e escorrem dos meus olhos mais promessas.

    Não acredites nesse breve sono;
    não dês valor maior ao meu silêncio;
    e se leres recados numa folha branca,
    não creiastambém:é preciso encostar
    teus lábios nos meus lábios para ouvir.

    Nem acredites se pensas que te falo:
    palavras
    são meu jeito mais secreto de calar.

    By Anonymous Anônimo, at 20/12/06 09:15  

  • Grandioso e fiel Doodle!
    Certamente, o melhor amigo do jovem Balla!
    Doce lembranças...

    By Blogger Chico da Kombi, at 21/12/06 01:04  

  • Querido CJ, há tempos não passo por aqui. E eis que hoje, me surpreendo e emociono com esse tão lindo Doodle. Sim, eu posso imaginar esse momento de reencontro. É assim que acordo todos os dias, com o reencontro de uma noite com o Luc, que parece não nos ver há alguns meses; e foi só uma noite, dormida no mesmo quarto. E noite após noite, ele reage da mesma forma, com a mesma recepção, calor, lambidas, rabinho balançante, tremores no corpo e ganidos quase choros. Toda manhã eu tenho uma manhã parecida com sua alegre manhã. E sei exatamente do que falas. Acho que jamais saberei acordar de outra forma. Um grande beijo.

    By Anonymous Anônimo, at 17/1/07 07:37  

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