Katrina, one year later...Acho que sou um cara de sorte. Quer dizer, continuo achando que sou um cara de sorte, até que o próximo ônibus me atropele na próxima esquina.
Sejam como for os meandros do azar, os mandos ou desmandos do destino, pelo menos parte dessa auto-imagem fora reconfirmada ano passado, quando vi Nova Orleans engolfada pelas águas do Golfo do México, envolta em cataclisma físico de force majeure, abandonada pelo estado à própria sorte, diante de um par de furacões de ferocidade máxima num espaço mínimo de dias.
Aceito a carga e a pecha de egoismo por falar apenas do meu privilégio sobrevivencial diante do infortúnio dos demais. Mas quem mandou eles morarem (ou morrerem) numa cidade 2 metros àbaixo do nível do mar numa região no meio da faixa dos furacões?
Minha sorte, repito, era de ter visto Nova Orleans quando ela ainda era viva.
No início dos anos 90, quando eu ainda morava em Austin – capital da república do Texas – pelo menos duas vezes por ano eu entrava no carro e dirigia para Washington, DC – capital de outra república vizinha – para visitar uma ou duas irmãs.
Com a experiência adquirida ao longo de cinco ou seis anos ao longo daquelas 26 horas de estrada ininterruptas, aprendi a discernir que o ponto mais interessante entre as duas capitais era exatamente Nova Orleans, uma das poucas cidades nos Estados Unidos que possuia algo que poderíamos chamar de “personalidade.” (Boston, São Francisco e Nova Iorque são outras. Chicago, diriam alguns. Mas nem sempre as tais “personalidades” vêm a ser de agrado.)
Pois a Nova Orleans, pelo menos seu miolo urbano histórico, era um lugar imediatamente reconhecível como “cidade”, assim como seria a Rua do Ouvidor entre a Praça Quinze e a Avenida Cen... (sorry) Rio Branco. Ou a Buenos Aires de San Telmo. Ou a Paris do Marais, a Londres de Covent Garden, a Copenhague ou a Amsterdam daquele núcleo de trânsito pedestre que dimensionava o tamanho de uma cidade numa época anterior ao automóvel, até ao trem.
No Vieux Carré eu me sentia em casa. E mesmo que eu soubesse que a Bourbon Street virava um pandemônio imbecil durante o Mardi Gras, quando hordas de jóvens americanos universitários invadiam aquele espaço pra beber, vomitar e soltar todas as frangas acumuladas ao longo de 300 anos de repressão puritana, na calma modorrenta do verão da Louisiana aquilo ainda me parecia um lugar aprazível, distante tanto da disneyfication dos lugares “interessantes” dos Estados Unidos, como da walmartization da mesmificação de tudo em nome de um comércio acessível ao consumidor dos mais parcos meios.
Havia história, havia romance. Havia mistério. Havia charme. E havia, como não, perigo.
Era mistura de Havana com Paris, ou Veracruz com Las Vegas em noite de blecaute, ou Vila Mimosa com Arco do Telles.
E até nos arredores, no tal Garden District erguido por prósperas elites anglo-irlandesas do século 19 para fugirem da geléia geral do centrão Afro-Franco-Hispano, havia ainda a dignidade arquitetônica vitoriana de uma cidade crescente que acenava respeitosamente aos primórdios do vernáculo do local.
Foi numa dessas escapadas, certa tarde, quase que num bonde chamado Desejo, que fui parar na Tulane University, lá na banda oeste da Garden District.
E foi lá que vi a camiseta mais engenhosa de todas que já vi (descontando a do Pink Freud, mas essa já é outra estória.)
A camiseta dizia isso, sob as armas da Tulane: Liberté, Égalité, Humidité.
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Há um ano Katrina,
E agora 2.000 mortos
78.000 moradias destruídas
A população nuclear caiu de quase 500.000 a 200.000
E a taxa de suícidio triplicou.
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O Presidente Arbustinho hoje jurou solenemente e publicamente que o estado, a partir de agora, vai saber responder melhor a situções de emergência.
Um ano depois.
Então tá.